É urgente voltar a priorizar programas de erradicação das hepatites

Número de pedidos de tratamento de hepatites diminuiu de 2.806, em 2020. O especialista em doenças do fígado, Paulo Carrola, alerta, neste seu artigo, para a urgência em mitigar o impacto da pandemia nos programas das hepatites virais.

Paulo Carrola, Núcleo de Estudos das Doenças do Fígado da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna
Paulo Carrola, Núcleo de Estudos das Doenças do Fígado da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna. Foto: DR

Todos os anos, a 28 de julho, celebra-se o Dia Mundial das Hepatites, data em que pessoas e organizações de todo o mundo unem esforços para sensibilizar a população e os decisores políticos para a importância destas doenças.

As hepatites víricas são condições inflamatórias do fígado provocadas pelos vários vírus da hepatite (A, B, C, D e E), inspirando maior preocupação as formas crónicas da hepatite B e C, embora atualmente disponhamos de tratamentos eficazes.

Uma vez que a infeção crónica é assintomática muitos doentes desconhecem que têm esta patologia e não procuram ajuda atempadamente, o que pode levar ao desenvolvimento de cirrose e cancro hepático. Este problema adquire especial gravidade na Hepatite C. Se para a hepatite B existe vacinação, há muito incluída no Plano Nacional de Vacinação, para a hepatite C resta a evicção dos comportamentos de risco para a transmissão da infeção e a identificação dos doentes por testagem e seu subsequente tratamento.

Em 2016 a Organização Mundial de Saúde (OMS) lançou as primeiras orientações com vista à eliminação das hepatites víricas como problema de saúde pública até 2030. Estas orientações incluíam quer medidas preventivas, como a administração da vacina da hepatite B às crianças e a segurança na administração de hemoderivados e injetáveis, quer a testagem e tratamento das hepatites B e C. Mas esta é uma matéria em constante atualização e a OMS já em junho de 2021 emitiu novas orientações que tendem a promover a normalização das abordagens de saúde pública para a eliminação da hepatite viral, reconhecendo a importância do contexto nacional das hepatites B e C.

O nosso país tem conseguido chegar aos grupos populacionais com maior prevalência da infeção, nomeadamente aos consumidores de drogas, aos trabalhadores do sexo, aos sem-abrigo e aos imigrantes. Contamos, desde há muito, com a ajuda de várias associações que, através de uma abordagem de proximidade, intervêm ao nível da prevenção, diagnóstico e tratamento da doença. Esta prática alimentou um novo modelo de prestação de cuidados de saúde através da deslocação dos profissionais de saúde, como a que já ocorre em inúmeros estabelecimentos prisionais.

Desde 2015, ano em que se iniciou o tratamento da hepatite C com antivirais de ação direta no nosso país, já foram autorizados mais de 28.000 tratamentos dos quais mais de 27.000 doentes já o iniciaram. A taxa de cura desta infeção persiste em valores elevados na ordem dos 97 %.

No entanto a erradicação da doença é uma meta ambiciosa e a presente pandemia veio adicionar ainda mais constrangimentos à sua concretização. Um estudo recente mostrou que 1 ano de atraso no diagnóstico e tratamento pode resultar num acréscimo de 44.800 cancros do fígado e 72.300 mortes por hepatite C a nível mundial até 2030. Os tratamentos para Hepatite C caíram, mesmo nos países desenvolvidos.

Em Portugal ocorreram menos 2.806 pedidos de tratamento em 2020 comparativamente a 2019, o que corresponde a uma redução de 62,5 %! Para mitigar o impacto da pandemia nos programas das hepatites virais e reduzir o excesso de mortalidade devido ao atraso nos tratamentos os decisores políticos devem priorizar estes programas logo que seja seguro fazê-lo.

Numa altura em que pretendemos virar a página da pandemia COVID19 devemos reforçar o rastreio, realizando-o de forma mais sistemática e organizada para atingir o maior número possível de indivíduos no mais curto espaço de tempo. Também de importância extrema é o tratamento atempado de todos os casos identificados de forma a atingirmos o objetivo global de erradicação até 2030. Precisamos de todos neste esforço conjunto!

Autor: Paulo Carrola, Núcleo de Estudos das Doenças do Fígado da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.