Cuidados paliativos e o grau de civilização de uma sociedade

Pandemia de COVID-19 tem mostrado algumas das lacunas nos cuidados paliativos, e a necessidade de serem incluídos no sistema de saúde. Céu Rocha mostra, neste seu artigo, a relação com o grau civilização de uma sociedade.

Céu Rocha, Coordenadora da Equipa de Cuidados Paliativos da Unidade Local de Saúde de Matosinhos
Céu Rocha, Coordenadora da Equipa de Cuidados Paliativos da Unidade Local de Saúde de Matosinhos. Foto: DR

O mês de Outubro tem sido nos últimos anos dedicado aos cuidados paliativos. Neste ano excêntrico, pelo contexto de pandemia, o foco sobre os cuidados paliativos é mais do que nunca necessário. E também o é a exigência da sua inclusão no sistema de saúde.

É por muitos tido que a presença dos cuidados paliativos reflete o grau de civilização de uma sociedade. Essa civilidade é hoje testada globalmente. É-o particularmente neste lado ocidental do mundo, do qual fazemos parte, e que acreditamos como mais evoluído.

O que são cuidados paliativos? Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde são cuidados que “visam melhorar a qualidade de vida dos doentes e suas famílias, que enfrentam problemas decorrentes de uma doença incurável e/ou grave e com prognóstico limitado, através da prevenção e alívio do sofrimento, com a identificação precoce e tratamento rigoroso dos problemas não só físicos, nomeadamente a dor, mas também psicológicos, sociais e espirituais”.

A pandemia que estamos a viver tem atingido de forma mais gravosa os mais vulneráveis. A taxa de mortalidade nos idosos está entre 14,8% a 21,9%, sendo a taxa de mortalidade global de 2% a 5%. São estes os doentes para quem uma escalada de cuidados poderá não ter indicação, por não terem capacidade de sobreviver a um ambiente agressivo de cuidados intensivos. E são estes, maioritariamente, os doentes alvo dos cuidados paliativos.

A necessidade de aplicar os princípios dos cuidados paliativos para atender às necessidades globais do doente e apoiar a família/cuidador, é crucial em contexto de crise humanitária e é transversal a todos os níveis de cuidados, desde a enfermaria geral às unidades mais diferenciadas. É particularmente importante nos contextos epidemiológicos, em que o afastamento físico dos doentes e famílias pelo risco de contágio leva a uma disrupção do ambiente sócio familiar. O envolvimento de psicólogos e assistentes sociais, assim como o apoio de líderes religiosos e voluntários, é de extrema importância nestas situações.

Contudo, em contexto de crise humanitária, os cuidados paliativos são muitas vezes deixados para um segundo plano. Frequentemente, e porque a prioridade é salvar vidas, as acções paliativas apenas são incluídas quando o tratamento curativo não se revela eficaz.

Mas o objectivo mandatório de salvar vidas não pode criar uma dicotomia entre cuidados curativos e cuidados paliativos. Doentes em tratamento intensivo necessitam paralelamente de uma abordagem holística em que estão inerentes os princípios paliativistas, e para os doentes para os quais é evidente que a cura não é possível, aliviar o sofrimento e/ou acompanhar o processo de morte é a prioridade.

É também muito importante que o contexto epidemiológico não deixe sem cuidados todos os outros doentes que continuam a sofrer de outras doenças que não Covid-19. A priorização do tratamento de agudos deve também ser pensada em função do tratamento das agudizações de doentes crónicos, através das equipas de proximidade já existentes.

A otimização dos cuidados ao doente em fim de vida deve incluir a preparação da morte no domicílio, desejo expresso por muitos doentes e cuidadores, ainda mais neste contexto em que o internamento leva quase sempre a uma separação total. A preparação da morte em domicílio é uma competência de excelência das Equipas de Cuidados Paliativos, que podem prevenir e tratar situações urgentes de fim de vida e diminuir o uso dos recursos hospitalares. O sofrimento numa situação terminal é uma urgência que pode muitas vezes ser tratada no domicílio.

Autora: Céu Rocha, Coordenadora da Equipa de Cuidados Paliativos da Unidade Local de Saúde de Matosinhos

Nota: Este artigo é escrito segundo a antiga ortografia